Os lutadores

(publicado no jornal eletrônico O Parazão Hebdo)


A porrada era seca. Ninguém se metia no assunto deles, tinha mais era gente apostando quase com tanta garra e peso quanto aqueles dois. Gritos, uivos, palmas, brega tocando nas caixas de som, um pouco de tudo no cais do Ver-o-peso. Cheiro de peixe e de cerveja choca. Cestas abarrotadas de açaí, alguns comendo pupunha cozida àquela hora mesmo. Outros até continuavam a assistir à novela na tevezinha ajeitada por cima de um dos balcões que serviam coca-cola com coxinha frita pela manhã, sem se importar com nada que acontecia às costas.

— toma, filhadaputa.

— pois eu aposto uma Pitú inteirinha, muleque. vai dar o Zé Galo nessa merda.

— vai dar é porra nenhuma. o Zé Firula vai levar a melhor.

E dá-lhe mais gritos de pega, toma, mete o cacete. Os pescadores mais afoitos faziam roda para os Zés não saírem derrubando os carregamentos em volta do espaço aberto.

— ei, dá uma olhada nas minhas caixas que eu vou ali pra ver direito essa história.

Galo desferiu um soco bem em cima do olho de Firula, que cambaleou para trás cuspindo um filete de sangue nas pedras do calçamento. A cada acerto, fosse de qualquer um dos lados, a gritaria aumentava. A briga era boa, equilibrada, e não era tão frequente naquele local. Por isso tamanha empolgação por parte de quem acompanhava a dupla se surrando.

Nenhum dos presentes sabia dizer com certeza o que motivou a disputa entre eles que, inclusive, eram amigos de longa data. A dona Jeusa achava que tinha ouvido o Firula falar algo sobre a mãe do Galo. Já Paulão da Toca afirmava, coçando a cabeça de cabelos ralos, que o lance era por uma dívida antiga, e que o Firula se cansou de cobrar do outro, então resolveu acertar a conta com juros ali mesmo. De qualquer maneira, o espetáculo agradava o povo, que vinha labutando desde bem cedo no cais. Um espetáculo para esquentar um pouco o sangue nas veias.

Firula se aproximou e deu rasteira bem dada, fazendo Galo desabar de bruços, como um saco de sarja cheio de arroz. Pequeno golpe surpresa que aprendera na capoeira que praticava desde garotinho. Aproveitou o momento para montar no peito de Galo e desferir uma série de murros no rosto de Galo, que buscava se esquivar para lá e para cá, sem sucesso. Teve espectador que já queria apartar, outros incentivavam aos berros. Dona Babé aumentou o volume do brega no sonzinho em seu balcão de venda. Eram dois lutadores bons, mas vencedor só pode haver um, como todo mundo sabe. Ninguém gosta de empate.

Zé Firula se levantou, o corpo escuro brilhando de suor debaixo das luzes, os punhos cheios de sangue do amigo. Um dos pescadores dividiu a grana das apostas com ele, várias notas de dois, cinco e dez amassadas de tanta vibração. Aquele que tinha apostado a Pitú passou a garrafa, que Firula virou na boca com uma grande golada.

Afinal, a polícia chegou para azedar a situação, daí que muita gente se fingiu de desentendida. Os oficiais perguntavam, o mais moço até ameaçava um e outro trabalhador, mas obtiveram apenas palavras desencontradas. Enquanto isso, os Zés sumiram, nenhum dos presentes viu por onde foram.

— e aí, Galo, quanto tu tem contigo?

— tu sabe que eu tô zerado. isso tudo foi pra quê, diabo?

— então umbora beber na Tamandaré, que é o que a gente faz de melhor hoje.

Zé Galo pegou a branquinha da mão do companheiro e fez cara feia quando o álcool queimou as feridas na boca. Era bom demais.

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