Os cidadãos de bem

BR-316, pouco antes das vinte e uma horas, voltando para casa no domingo. O trânsito começa a ficar lento, até quase parar. Na pista contrária, luzes de viaturas de polícia, aglomeração de gente curiosa. Incrível como quase todo mundo é curioso pela desgraça alheia. Porque com viaturas e enxeridos, só pode ter acontecido desgraça.

Eu querendo chegar logo, tomar um banho, ler cinco ou dez páginas de um gibi antes de dormir, e os motoristas diminuindo a marcha para apreciar a merda de alguém. E iria reclamar com quem sobre isso? Não tinha escolha, precisava ficar preso entre as filas no asfalto.

Não sou de apreciar a má sorte de estranhos. Isso que eu chamo de bicho-homem tem uma mania sinceramente cretina de espiar a vida do vizinho pra ter o que comentar na hora do jantar ou durante o intervalo do jogo de futebol. Pra ter o que falar nas redes sociais, pra ter do que se gabar pros amigos. Se gabar?, você pergunta. É, se gabar, como se falar da miséria de um estranho fosse o ponto alto da semana para essa criatura.

E se tirarem fotos e gravarem vídeos nos celulares, melhor ainda, terão a prova definitiva.

Por isso, quando avistei as luzes de uma das viaturas ainda ao longe, não me empolguei. Nem mesmo me interessei pelo que quer que tenha acontecido. Não saí em busca de notícias de algo fora do normal na rodovia. Se bem que, ultimamente, o normal é acontecer alguma merda qualquer na rodovia, mas isso seria para outro texto.

As outras pessoas, sim, as outras pessoas faziam questão de verificar com calma e curiosidade a cena. Como se não bastasse a enxurrada de más notícias todos os dias, todas as horas, por todas as esquinas.

Mas, você diria, isso se trata de empatia pelo próximo, de querer saber o que ocorre para ajudar. Empatia, você diz, e eu olho pra sua cara com uma vontade imensa de rir. Você e os que compartilham dessa desculpa mais do que esfarrapada não entendem o que é empatia. Também não me venha com a história de compaixão. Tudo pode ser em um momento como esse, menos empatia e compaixão. Essa atitude não passa de cretinice pura e simples. Ou para quem não entendeu: de um prazer mórbido disfarçado de espanto. Como escrevi uma vez num poema, as pessoas precisam cuidar umas das outras, mas não atrapalhem quem realmente ajuda, muito menos enalteçam a tragédia e a merda do próximo.

E os mesmos cretinos e cretinas que enaltecem a tragédia e a merda do próximo são os mesmos e as mesmas que se dizem cidadãos de bem. Porque todo mundo é cidadão de bem, é uma equação simples e furada. Não importa a classe social, o quanto possuem de grana nos bolsos ou o tamanho da casa onde moram, isso não pode ser jamais atitude de alguém de bem.

Veja só como o esquema parece funcionar. Você aprende que matar é errado, que roubar é errado, que estuprar, que atropelar é errado. Porém, quando sabe que qualquer dessas coisas aconteceu com alguém, corre pra beira da pista ou pro boteco ou pro quinto dos infernos a fim de registrar o fato. Porque é errado, mas é divertido pra cacete. Em bom e claro português: você é o mesmo tipo de pessoa que reclama de deus e do mundo, mas sempre quer fazer uma festa quando alguém se fode. Você é o mesmo tipo de pessoa que se considera de uma integridade inabalável, e no entanto adora ver sangue espirrando, porque é muito bacana e, mais importante ainda, porque não é o seu.

Admita de uma vez que você é um(a) carniceiro(a). Seja sincero(a) consigo. Faz parte da cretinice querer passar uma boa imagem. Mas ponho minhas fichas na mesa: qualquer sinceridade é mais nobre, além de menos feia, do que a boa imagem de um(a) cretino(a).

Depois de passar pelas viaturas, o trânsito voltava ao normal rapidamente, passávamos todos a correr normalmente pela pista. A curiosidade deve ter passado, dando lugar à pressa de chegar logo pra não perder a programação do Fantástico, o diabo da sua revista eletrônica no diabo da rede Globo.

Cidadãos de bem o meu rabo, se você quer saber.

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