Aporrinhação

Aporrinhação. Palavra boa, dessas que explodem no meio da cara, levantando o astral da tarde de domingo. Nem sei por que penso nisso, mas gosto de uma aporrinhação.

Ontem teve festa no prédio, mas não estava muito afim, era a tal aporrinhação das coisas ao meu redor me azucrinando, sentimento de fim de semana. Acendi um cigarro amassado na janela e pensei mais um pouco: que merda, onde o mundo vai parar?, onde eu vou parar?, aonde aquele táxi lá embaixo está indo?, quem é a puta de pernas grossas balançando a bunda dentro de uma calça justa?, como é que se faz para morrer em paz? Não teve jeito, joguei a guimba fora.

Não fui convidado, mesmo assim desci para espiar a gente no térreo com a melhor roupa. Não conheço ninguém nesse lugar. Moro sozinho e não conheço sequer a vizinha loira do apartamento à esquerda do meu. Acho que vive com a filha, ou algo assim, mas nem lembro muito bem do rosto delas. Não preciso lembrar. E o idiota do vizinho da frente, que se mudou há alguns meses para cá, instalou uma grade metálica na porta e a deixa aberta o dia inteiro. Por que fui lembrar justamente do vizinho, de quem nunca vi o focinho? Por que caralho um sujeito faz isso, eu me pergunto. Só para aporrinhar a minha vida, respondi, e olhei em volta para ver quem estava na festa. Festa de criança, pelo visto, balões pendurados, um bolinho entupido de chantili e confetes, aquela coisa. Uma garota de vinte e poucos anos carregava um bebezinho no colo. Bebezinho. Como se um bebê já não fosse suficientemente pequeno para ser um bebê, ainda tem de ser bebezinho. Oh, malditos vícios de linguagem.

Uma moça de vinte e poucos anos carregava um bebezinho no colo e vi que era uma bela garotinha, olhos esbugalhados de curiosa, a baba pendendo do lábio inferior. A moça passou por mim para conversar com uma das condôminas, uma senhora que fazia gracejos e grasnava para a criança. A criança não se mostrou interessada na velha, mas em mim, ficou me encarando com aquelas bolas escuras e brilhantes, eu disse oi bonitinha e dei um sorriso sem mostrar os dentes, ela abriu um pouco mais a boca, tentando me imitar, a garota, que eu acho que devia ser a mãe, achava graça. A velha me fitava como se perguntasse se eu fosse da família, eu nem aí para ela, mexi com os dedinhos gordos e delicados da menininha, e por um instante esqueci a aporrinhação dos dias. Eram dezoito horas e trinta minutos no meu relógio.

Fui para a frente do prédio. Cumprimentei o Seu Raimundo na portaria, perguntei se tinha correspondência para mim, ele respondeu que não, eu disse que tudo bem, então perguntei de quem é a festa, Seu Raimundo respondeu que é aniversário de um ano da moça do 704, perguntei se era a filha de uma moça assim-assada, ele disse que sim, eu disse que hum-hum, deve ser a mãe da coisinha linda que acabei de cumprimentar, ele sorriu e ficou tudo certo entre nós. Abri o portão, me dirigi para a calçada, acendi outro cigarro amassado e olhei para os lados da rua, uma barulheira de sons estranhos e indistintos aqui e acolá, todo mundo tentando ser feliz no que restava do domingo. Felicidade não é lá uma palavra muito boa. Aporrinhação ainda é melhor.

Flatulência é uma palavra igualmente boa. Flatulência. Penso flatulência porque havia acabado de soltar um peido daqueles que fazem barulho, mas ninguém nota, também não sei se alguém iria sentir o cheiro, Seu Raimundo ficou lá dentro, mas um domingo é igualmente feito disso. Prometi que vou tentar registrar na memória que não posso mais comer carne em conserva, acho que está começando a me dar gases. A ervilha foi só para dar o tempero no jantar, só que, merda, também preciso registrar que tenho de voltar ao hepatologista para outra consulta. Coisas da idade, alguém poderia dizer, eu digo que são apenas excessos da idade. Pedra na vesícula, e tal. Me falaram que normalmente é um amontoado de proteínas que se instala nesse troço, que vou ter de fazer cirurgia para extirpá-la, a vesícula e a pedra, e que a pedra na verdade tem a aparência de uma massa gosmenta e melecada de sangue. Proteína e meleca são palavras interessantes. Meleca. Proteína. É, são sonoras. Sangue é sangue, ora.

Nada de mais lá fora, então voltei, subi a escada da entrada, atravessei o salão, cheguei ao elevador, espiei novamente o povo começando a fazer mais barulho do que o bairro todo. Tocava música infantil de algum ponto, as pessoas comiam salgadinhos, um barrigudo abriu uma garrafa de cerveja na mesa, e pensei que um idiota desses deveria saber que era festa de criança, não o boteco de maloqueiros da esquina. Procurei a garotinha, dei os parabéns à mãe, ela quis saber se não queria sentar um pouco, inventei uma desculpa de que precisava me retirar. Antes segurei a mãozinha da pequena mais uma vez entre meus dedos grossos, balancei delicadamente seu braço minúsculo, ela babou um pouco mais com aquelas bolas escuras e luminosas, quase como uma acusação de mim mesmo. Imagino que estivesse querendo que eu continuasse ali, só para ficar encarando minha barba mal feita. Dei um beijo e apertei suas falanges, tive medo de apertar demais e entrei no elevador de serviço.

Pensei que devia agradecer àquele anjo que ainda nem consegue manter firme a cabeça sobre os ombros. Que devia agradecer pelo sorriso desdentado. Agradeci. Aperto o botão do meu andar. Para encontrar minha aporrinhação empoleirada na janela outra vez. Empoleirada. Que diabo de palavra é essa.

Comentários

Postagens mais visitadas