Sampa de Cruzeiro do Sul

Vinte e três horas, por aí. O homem acaricia o cãozinho no colo feito criança pequena pedindo para dormir lá embaixo, ao lado do ponto de ônibus. A televisão não funciona nem com reza. Dois cabides pendurados nos cabos de força da tevê e do ventilador, e esse sim, funciona que é uma beleza.

O hotel, que sequer possui um nome na entrada, cheira a putas e bandidos e depressivos. Preocupação?

Perguntei no balcão de informações da rodoviária à moça sobre algum local para descansar pelas redondezas.

— Vá até a Cruzeiro do Sul e o senhor vai achar um monte de hoteizinhos, logo na frente.

Hoteizinhos, ela disse.

— Desculpa, mas o que é isso, Cruzeiro do Sul?

A moça me olhou como se tentasse decifrar o que sairia de dentro da minha barba de cinquenta e dois dias. Ácaros ainda eram invisíveis àquela distância.

— O senhor desce por aquele caminho ali, pega a última escada à direita e já vai estar na rua. Daí tem os hoteizinhos.

— Ah, Cruzeiro do Sul é a rua.

— É.

Mentira, é avenida, mas dane-se.

Estou entrando no primeiro hotel que vejo e aparece o malandro. Peremptoriamente sempre espero os malandros nessas horas.

— Ô, meu querido.

Parei. Como assim, querido?

— Quer um lugar mais barato?

— Depende.

Fecho a cara, eu e minha barba de ácaros, mas não acho que ele tenha se importado. Sigo o sujeito doze metros para a esquerda, falo com o negro gente-boa na recepção, são cinquenta reais, tudo bem, tem ar condicionado?, não tem, mas que merda de pergunta foi essa, Marlon, olha só o local, perceba o visual, tem uma escada de madeira no meio do acesso por onde tenho de subir, tem uma toalha, uma toalha pendurada no meio do acesso por onde tenho de subir.

Ar condicionado?

Viro à direita, vejo o balancim ao lado da porta do 45 totalmente esbagaçado, e penso: cinquenta reais. Vejo a cabeça de alguém por trás do balancim, provavelmente de pé sobre a cama, parece que está havendo festa por ali, viro à direita novamente e entro no 43. Tudo azulejado, do chão ao teto.

Volto à recepção e deixo a chave sobre o balcão, o negro gente-boa diz que posso ficar com ela, só faz o favor de devolver quando for embora. Emoção de portar a chave do meu próprio quarto, e o 43 escrito a caneta esferográfica no chaveiro de plástico chinfrim começa a parecer simpático.

À esquerda, um boteco daqueles de carregar muita solidão entre as mesas. Peço a porcaria do cigarro e um copo de água mineral, bebo tudo ali na frente. Sei lá, de repente não me interessei em deixar minha marca naquelas paredes.

À direita, passando o hotel-sem-nome, a esquina. Fumo ao lado de outro hotel, esse sim, com nome, enquanto observo os que chegam, os que ficam, os que vão. Imagino que eu devia estar aparentando ser suspeito naquele ponto. Caminho ao restaurante-lanchonete do hotel-com-nome, pergunto por uma lata de cerveja. Um maluco com jeito de chapado grita por dois cigarros com umas moedas na mão.

— Tem Itaipava. Quatro reais.

Puta merda. Mas paguei.

Outros malucos, desta vez bem na entrada do meu hotel. Já estou chamando de meu hotel, veja só. Olhei para baixo, para os pés deles, e vi chinelos. Relaxei, eu também usava chinelos. Sobre aquele concreto, aquele asfalto todo, sobre as bitucas, chicletes amassados e bueiros, me senti mais um.

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